Fertilidade

A manifestação de hoje promete: em números, em volume sonoro, em exposição mediática. As pessoas estão descontentes e, já sabemos, cheias de razão para tal: olhamos a Grécia e começamos a ver-nos gradualmente a seguir um caminho análogo. Insinua-se o medo, a fome, a ruína, e há que reagir, exigindo um novo país, emergente dos escombros de um beco sem saída há muito anunciado e agora constatado.

Mas temo que a manifestação possa não cumprir: a exigência de um novo país passa pela reinvenção dos paradigmas de relacionamento social. Se a ideia é empunhar cartazes “anti-Coelho”, berrar algo frente às câmaras (municipais e televisivas) e mais logo ir para casa comer o entrecosto e ver o Malato, a manif terá servido apenas como válvula de escape e auto-regulação. Aqueles que a manifestação pretende avisar dormirão mais descansados, porque o povo terá exercido a catarse e portanto voltará a acalmar mais uns tempos. Tudo permanecerá no seu lugar, xadrez inalterado, relações de poder sem um beliscão.

Nada contra a catarse colectiva: ela é e sempre será essencial em qualquer sociedade. Mas se a ideia aqui é a de construir um novo paradigma, o desafio é o dia seguinte. Após as manifestações “geração à rasca” de 12 de Março de 2011, surgiram múltiplos foruns online onde se debatia o que fazer com, e a partir, da enorme convergência de vontades de mudar. Defendi então, como defendo hoje, que não se deveria “começar a fazer propostas” nem “organizar movimentos”. O início de uma mudança efectiva deveria partir tão simplesmente de um convite para que todos passassem a sair à rua -todos- os Sábados, sem agenda, tão somente para re-inventar o espaço público (geográfico, social e afectivo) de forma intuitiva e generativa, infinitamente múltipla. Falando com estranhos, ampliando o micro-debate, descobrindo semelhanças, diferenças, pontes, barreiras, contrastes e conciliações. Cuidando a longo prazo de um tecido social vivo, activo, auto-regenerador.

Em vez disso, o movimento “geração à rasca” assumiu representantes (“líderes” proto-partidários!), que registaram a marca e se sentaram no palco do auditório do ISCTE (se a memória não me falha), apelando aos cidadãos que aí fossem “fazer propostas”. A coisa morreu aí, antes de mais porque se apressou a replicar a própria estrutura de poder que supostamente contestava. E foi o fim do movimento: volta-se hoje, portanto, à carga.

Pese embora as carradas de razão que a sustentam, a manifestação é um momento reactivo. Se não for capaz de lançar as sementes da emancipação, se não for capaz de reconhecer e comunicar que esta crise é, antes de mais, o imperativo de nos passarmos a relacionar socialmente de novas formas, a manif de nada valerá. O momento em que “eles” passarão a dormir mal é o momento em que tomarmos as rédeas ao que só de nós depende: porque isso é património humano, inalienável e imune aos mercados e à especulação.

De outra forma, nada distinguirá a manif do ritual de berraria da bola: campeões hoje, e amanhã nada.

 

3 thoughts on “Fertilidade

  1. Gostei da tua abordagem. Fiz circular o teu texto. Vamos ter de mudar isto, não há qualquer dúvida.
    julio.oliveira@____.pt

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